Este é um tema bem recorrente, ou melhor, é quase um dogma.
Vou aproveitar este assunto para dividir minha opinião sobre a questão.
Nos meus 45 anos de carreira como profissional, ouvi milhares de vezes, a frase título deste texto e/ou suas variações - o artista verdadeiro não se prostitui - fulano de tal está apelando - ele tem talento mas optou por ganhar dinheiro, etc, que trazem embutidas em seu significado, os motivos reais que tornam a profissão do músico tão difícil e instável.
Ao contrário do que parece, a música não é um produto supérfluo, mas sim um campo muito rentável e necessário. O rádio, a televisão, a publicidade, as plataformas de streaming, as gravadoras, os bares, restaurantes, empresas de entretenimento, e uma infinidade de atividades comerciais se utilizam da música para impulsionar negócios.
As fábricas de instrumentos musicais, por exemplo, têm ganhado muito dinheiro há décadas, desenvolvendo produtos para todas as classes e gostos. São multinacionais potentes, muito lucrativas, porque muita gente no mundo quer tocar um instrumento.
Grandes marcas procuram instrumentistas de destaque para as representarem, o que é muito positivo, mas o que chama a atenção são os valores pagos por esta representação. Muitas vezes restringem-se a instrumentos e acessórios, o que torna a relação bem abusiva a favor da marca. O artista ganha um instrumento mas ajuda a vender dezenas, centenas ou até milhares de unidades. Os presidentes, os administradores, os responsáveis pelo marketing, os representantes comerciais de uma marca, dentre outros profissionais envolvidos, ganham excelentes salários enquanto os musicistas que dedicam horas e horas por dia para serem inspiradores, ganham um instrumento, um pedal, alguns jogos de cordas, uma boquilha, um jogo de baquetas, enfim, presentinhos úteis cujo custo para o fabricante beira o irrisório.
O mais interessante, é que o artista não apenas endossa essa relação, como se sente orgulhoso por representar grandes fábricas. Aqueles que percebem o disparate dessa relação e tentam uma negociação mais justa, são imediatamente substituídos por outros, mais jovens e no início de carreira, que inocentemente entram no jogo para favorecer o fabricante perpetuando um ciclo do qual ele mesmo será vítima num futuro próximo. É o verdadeiro “tiro no pé”.
Outra situação bem comum é tocar em troca de divulgação.
Quem já não recebeu uma proposta para tocar de graça em um grande evento sob esta promessa?
A conversa é sempre a mesma - haverá muitos empresários que poderão ser seus patrocinadores no futuro, é um excelente networking pra vc. - E lá vamos nós prontos para sermos explorados novamente. O artista que já conhece a estratégia tende a não aceitar, e aí vem um jovem esperto e aceita o jogo. Mais um ‘tiro no pé”.
Em poucos anos ele vai descobrir que foi usado e não ganhou nada em troca e mais, será substituído por outro jovem sonhador que também dará um “tiro no pé’.
Porque isso acontece?
A resposta é simples - nós permitimos, ou melhor perpetuamos essa prática.
E porque permitimos?
Porque somos movidos a sonhos.
Somos carentes e crédulos. Um elogio ou um afago são mais do que suficientes para nos satisfazer. Tudo o que queremos é o reconhecimento de nosso valor e talento, e o dinheiro nem precisa vir junto. Aliás se não vier junto, tanto melhor porque fazemos isso pela arte, somos puros de alma não seremos prostituídos, ou seja, mais um estrondoso e dolorido “tiro no pé”. Apesar de não parecer, nós nos prostituímos sim, e por bem pouco. Ao aceitarmos um convite desses, diminuímos o valor nosso e dos nossos colegas, prejudicamos a classe como um todo.
Alguém já viu um médico, um engenheiro, um advogado, um arquiteto oferecerem seus serviços de graça em troca de divulgação?
Muito pelo contrário. Eles cobram e muito bem. Quanto mais eles trabalham respeitando pisos salariais e tendências de mercado, protegem-se uns aos outros, mantendo um patamar profissional razoável.
Em resumo, temos uma certa vergonha de associar nossa “arte pura” ao dinheiro e assim perpetuamos essa relação abusiva, onde nós fornecemos o produto extremamente importante de graça, para os oportunistas do mercado se empanturrarem.
E quando isso vai mudar?
Quando tomarmos consciência do real valor do que produzimos, quando tivermos respeito pela arte, por nossos colegas e por nós mesmos, ou seja - talvez nunca.
The true musician does not sell himself.
This is a very recurrent theme, or rather, it is almost a dogma.
I'm going to take advantage of this subject to share my opinion on the issue.
In my 45-year career as a professional, I have heard the title phrase of this text and/or its variations thousands of times - the true artist does not prostitute himself - so-and-so is appealing - he has talent but chose to earn money, etc., that they bring embedded in their meaning, the real reasons that make the musician's profession so difficult and unstable.
Contrary to appearances, music is not a superfluous product, but a very profitable and necessary field. Radio, television, advertising, streaming platforms, record labels, bars, restaurants, entertainment companies, and a multitude of commercial activities use music to boost business.
Musical instrument factories, for example, have been making a lot of money for decades, developing products for all classes and tastes. They are powerful multinationals, very profitable, because many people in the world want to play an instrument.
Big brands look for outstanding instrumentalists to represent them, which is very positive, but what draws attention are the amounts paid for this representation. They are often restricted to instruments and accessories, which makes the relationship quite abusive in favor of the brand. The artist wins an instrument but helps to sell dozens, hundreds or even thousands of units. Presidents, administrators, people responsible for marketing, commercial representatives of a brand, among other professionals involved, earn excellent salaries while musicians who dedicate hours and hours a day to being inspiring, earn an instrument, a pedal, some strings, a mouthpiece, a set of drumsticks, so, useful little gifts whose cost for the manufacturer borders on the ridiculous.
The most interesting thing is that the artist not only endorses this relationship, as he feels proud of representing large factories. Those who realize the absurdity of this relationship and attempt a fairer negotiation are immediately replaced by others, younger and at the beginning of their careers, who innocently enter the game to favor the manufacturer, perpetuating a cycle of which they themselves will be victims in the near future. It's the real "shoot in the foot".
Another very common situation is touching in exchange for disclosure.
Who has not already been offered to play for free at a major event under this promise?
The conversation is always the same - there will be many entrepreneurs who could be your sponsors in the future. It's an excellent networking for you. - And there we go ready to be explored again. The artist who already knows the strategy tends not to accept it, and then a smart young man comes along and accepts the game. Another 'shot in the foot'.
In a few years he will find he was used and got nothing in return and more, he will be replaced by another young dreamer who will also “shoot himself in the foot”.
Why does it happen?
The answer is simple - we allow, or rather perpetuate, this practice.
And why do we allow it?
Because we are driven by dreams.
We are needy and credulous. A compliment or a caress is more than enough to satisfy us. All we want is recognition of our worth and talent, and the money doesn't even have to come along. In fact, if it doesn't come with it, so much the better because we do it for the sake of art, we are pure in soul, we won't be prostituted, that is, another resounding and painful “shot in the foot”. Although it doesn't seem like it, we do prostitute ourselves, and for very little. By accepting such an invitation, we diminish the value of ourselves and our colleagues, harming the class as a whole.
Has anyone ever seen a doctor, an engineer, a lawyer, an architect offer their services for free in exchange for disclosure?
Quite the opposite. They charge and very good. The more they work respecting salary levels and market trends, they protect each other, maintaining a reasonable professional level.
In summary, we are ashamed to associate our “pure art” with money and thus perpetuate this abusive relationship, where we provide the extremely important product for free, for market opportunists to gorge themselves.
And when will that change?
When we become aware of the real value of what we produce, when we have respect for art, for our colleagues and for ourselves, that is - maybe never.
Boa reflexao Ulisses!
Deixo aqui um artigo que considero bastante bom sobre esse tema e que traz propostas interessantes.
Abraço
https://castellonplaza.com/marc-ribot-es-muy-dificil-salir-del-amateurismo-musical-si-no-eres-una-persona-privilegiada
Muito bem colocado Ulisses, tocou na ferida que a maioria não tem coragem de expressar.
Inclusive cansei de ouvir as pessoas perguntarem, você trabalha com o quê mesmo? Sou músico.
Eu sei que podemos ficar horas discutindo sobre isso, mas a posição que a música ocupa na sociedade hoje é muito mais um entretenimento, do que arte, fica mais na superfície do viver, do que a profundidade de uma arte tão maravilhosa que é a música.
Me lembro de ter participado de um evento no consulado da China em São Paulo, junto com minha esposa, convidados por um aluno dela, ela como pedagoga e eu acompanhando, num determinado momento um representando do consulado me perguntou qual era minha profissão e…
Muito legal o texto Ulisses, é verdade tudo isso! O músico no Brasil é um sujeito pra lá de maltratado e nossos pais, avós e familiares estavam, na maioria das vezes certos, quando comentavam "ih...músico? Vai morrer de fome!!!" quando apresentavamos a opção pela faculdade de música ou dedicação integral a música... Eu tenho um amor imenso ao violão, a música, mas sei que se dependesse dela para o meu sustento receberia muito desaforo, e humilhações para ganhar talvez, apenas uns trocados. A minha opção particular ( e honrosa!) para isso foi fazer Pedagogia - e não Licenciatura em Arte com Habilitação em Música, ou mesmo Bacharelado em Instrumento, pois não teria condições de fazer projetos interessantes com um…